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A carne é para a morte e mesmo que o azul faça fumo e desmaies nos brancos ninhos, não atinjo a nuvem nem o pranto que libertas. Sou um menino entusiasmado com a sabedoria do teu colo.
Chegaste quando eu estava de partida. Aprendera há muito todos os êxtases, todos os gritos, todas as quedas e nos olhos tinha tudo pronto para o deserto. Mas houve uma palavra tua. Nem sei onde estavas. Numa península de medo? Numa dor passada aos olhos escuros? Recebi as tuas lágrimas no mesmo momento em que te pedia os lábios para poisar os meus, saturados de curvas secas.
Não sei o que me pedias em troca desta sede.
Fico afogueado quando me inspiras. Deste-me o olhar trancado, brilho misterioso e silêncio. E não entendeste o mal que me fazia receber essa luz dolorosa de quem tinha a morte nas mãos e ao mesmo tempo a euforia do sangue espalhado por feridas imensas que jamais ousaste contar.
Fui passear para fugir de ti, mas enfiei a dor numa luminosidade cambiante, que nunca mais apaguei na alma. Quando te quero recuperar acendo essa imagem - a única real que me deste durante meses de amor - e escrevo-te.
Escrevo-te poemas de carne e músculo ávido e faço diários onde entras com um sol estimulante que me põe em alvoroço e me restitui o esplendor perdido no tempo.
Tenho a pele de quem recebeu décadas de sol e os ossos vão perdendo a rigidez, ostentam um corpo desanimado, velho para o amor.
Tu, que me poderias lavar o sal deste suor nocturno; que, com esses olhos suaves e medrosos, me acenderias o fogo na água; tu, que me poderias dissolver este coágulo de raiva, oferecendo-me o vinho das tuas veias, estás ausente e nem sonhas o quanto vivo e atraso a morte, na esperança de te encontrar no abraço que nos fará um.
Quero ser um contigo. Fundir toneladas de lágrimas iguais às que roubo nas tuas noites abandonadas; misturar as salivas, nossos velhos vinhos isolados nas caves, nossas mães.
Há um destino preso nesta teia de acasos.
Quando chegaste, desfizeste-me a agonia para a última viagem. Mas dói estender os braços e dói estender o corpo sem encontrar o espaço penetrante do teu. Onde estás? Porque não te deixas prender nos tentáculos que te estendo? Porque não te atiras para o abismo que te ofereço? Ouço o pânico nas palavras que me ditas. E vejo-te avançar e recuar, recuar e avançar...
Sei que te queres perder na seda branca dos meus dedos, que amas as peles, as rugas, os acidentes, os pés cansados, os pulmões doentes, as árvores centenárias. Sei que estremeces com esta tempestade invasora, que procuras o fundo escuro, que escorregas nas flores do meu corpo dado ao vento; sei que desejas mãos sedentas no teu tronco, bocas húmidas nas tuas vértebras. Que talvez ames este amor que te eriça os bambus quebrados, esta dor roxa, que me mata.
Deito-me contigo, mas nunca te vi.
Acordo dentro de ti mas nunca te toquei.
Vou ao céu, ao inferno, ao centro da terra e inundo-me nas tuas águas mas nunca colhi as folhas da tua nudez. Nunca um dedo amanheceu na tua carne húmida e todas as manhãs abro os olhos nos teus feridos.
Vivo de visões. Expludo nas tuas veias por percorrer. E choro e depois grito meu amor, meu amor, amando esta preparação para a morte.
E sei que ouves; sei que me entendes e me sorves, e que te aproximas, cheia de medo, e que abres o peito, apalpas raízes, lambes o meu sangue e mastigas o meu sal. Louco e morto.
Amas a morte, a pele que já não brilha, o músculo descido, o dente cariado. Enternece-te a secura, o resultado do electrocardiograma, o coração ainda bravo, a seiva que brota deste fruto inviolável que sou, que és, que queres ser em mim.
Quanto tempo nos sobrará depois de mortos? Quero dizer: que importa que um dia uma veia entupa? Que a carne gele? Que os pés se firam numa pedra? Que importa o fim, se a memória tem registos eternos?
Nunca te vi e nunca te esquecerei. És o abrigo, após tantos asilos. O espaço onde me aperto para caber; o azul da onda que me leva dentro, o líquido desejo de arder. És, e basta-me.
Neste tormento vivo de ti: aqueço-me no teu fogo humano, lavo-me nas tuas lágrimas, seco-me na tua respiração e encontro o perfume das estações nos teus dedos hábeis.
Nunca me tocaste, mas tocas-me. Abres-me o círculo onde escondi a vida e assim me derramo pelo teu corpo; assim espalho o amor e a dor, assim engano a morte.
Contigo morrerei mais próximo do céu, da areia e do mar. Morrerei no fundo da tua paixão sem limites: morrerei nos teus abraços tórridos, nos teus joelhos magros, isolado entre as tuas pernas - uma ilha, dentro do mundo.
Orientas-me para o fim e agora sei que as mortes são momentos serenos, cumes sem dimensão, fumo natural que se dissolve na luz. E o corpo, uma aura, uma árvore carregada de frutos.
Apanhas-me. Colhes-me na tempestade e levas-me para o teu chão: abres-me com os dedos, devoras-me. Os teus dentes são facas e escorro dos teus lábios, e sou apenas sumo. Bebes. Vergas-me no canavial mais antigo, levantas bandeiras dentro de mim, edificas-te e não me deixas ruir.
São perversas as nossas posses: damos em vez de tirar e damos tudo o que temos de mais interno, de mais húmido e telúrico. E ao darmos esta matéria inflamável ficamos ainda mais nobres, mais sérios, mais febris.
Atravessas o meu coração sem sombra. Não fazes ruído.
Chegas, leve nuvem que me envolve, pões os braços em volta das minhas sílabas, sabendo o silêncio que as divide, a dor que as descontrola e as faz sussurro doce.
Digo o teu nome: nada. És o nada que me ocupa a voz; o espaço que ninguém vê, entre o que sou e vou ser: morte. És a dolorosa captação do vazio à volta e ousar ver-te é conhecer o trilho para o fundo, para a luz. É ter asas obscenas: voar onde o medo não habita, só o caos. O doce caos de te sobrevoar por baixo e ao lado e de frente e por dentro.
Gosto de não te ver: a tua invisibilidade é onde melhor deposito o meu corpo. Pois que tudo um dia será ausência, fumo e osso. E a memória, tão pouca. Talvez nem seja necessário juntar à carne esta porção de cinza. Nem elevar o silêncio ao estado definitivo da morte.
O sol resgata-me do frio.